quinta-feira, 19 de junho de 2008

O DESASTRE DE SIMONE NA NOVELA SELVA DE PEDRA (1972).


 
O carro sai da estrada, rola no barranco e explode. Sirenas, polícia, rodoviária gente se oferecendo para ajudar. É a cena mais ousada e difícil jamais filmada na televisão brasileira.

Quinta feira 10 horas da manhã. No Km 35, da estrada Rio-Petrópolis, tudo é tranqüilo. De repente , uma Kombi da Rede Globo de televisão, estaciona, seguida por um cortejo de ônibus e carros de externa. Depois chega uma ambulância da Santa Casa de Misericórdia, uma equipe de médicos, um carro de polícia rodoviária, O Dodge Dart amarelo de Regina Duarte e um caminhão transportando um Volks 65, de cor azul-celeste. Em pouco tempo, o local se enche de curiosos e perguntas e perguntas, enquanto artistas e técnicos jogam bola, descansam sobre a grama ou tomam cafezinhos do Belvederi, à espera do início da gravação de mais um capitulo da novela “Selva de Pedra”: o desastre com o fusca de Simone, que mobilizou toda a equipe de produção. É a primeira vez que a televisão brasileira faz um carro explodir.

Marcada para a parte da manhã, os preparativos estenderam a gravação até o fim da tarde, quando a produção mandam que todos desçam mais de 200 metros na estrada, junto a um barranco de dois metros de altura. Duas câmaras são colocadas debaixo do barranco, montadas em dois caminhões. Vereza, que vai gravar uma cena, dirigi-se para um dos ônibus afim de trocar de roupa e o resto da equipe se senta no meio-fio. Enquanto isso os técnicos trabalham concentradamente, sob a direção de Walter Avancini.

A 200 metros dali, a polícia rodoviária impede o trânsito para que se inicie a primeira tomada: a queda do fusca verde, onde estão Simone (Regina Duarte) e Lena, sua nova empregada (a atriz Tâmara Taxman que pela primeira vez trabalha na Globo).

PREPARANDO A MORTE – O fusca é colocado sobre tábuas, na direção do barranco. Tudo pronto; câmeras ligadas, caminhões de externas funcionando, fotógrafos de olhos fixos nas maquinas e olhares assustados das cem pessoas que cercam o local. “Vamos começar a gravação”, diz Avancini.

O carro de socorro empurra o Volks, mais ele só vai até a metade do barranco. A cena deverá ser repetida. O reboque se prepara para trazê-lo novamente para a estrada. Gonçalves e Celinho- assistentes de produção- vão até o meio do barranco e ajudam amarrá-lo para a subida. Tudo deve ser perfeito para que a gravação não seja transferida para outro dia. As pessoas ficam em silên cio preocupadas com os dois assistentes que operam junto do carro, no barranco. Depois com muito esforço, parte do trabalho é realizada. Já quase em cima do morro, um dos pneus sai do lugar. Vereza e Avancini tentam colocá-lo novamente no sobre as tábuas. Segurando um cano de ferro, molhado de suor, Vereza se esforça para apoiá-lo. Quando tudo já está quase pronto, uma das tábuas se quebra e é preciso consertar a posição do automóvel. Durante todo esse tempo, Avancini avisa às pessoas que se afastem do local. Finalmente o carro é colocado sobre as tábuas. Todo mundo aplaude e respira de alívio.

NA DIREÇÃO DO ABISMO – As câmeras são ligadas de novo, os caminhões voltam aos seu postos e está tudo pronto para a repetição da cena. “vamos começar a gravar”, grita Avancini. O carro é empurrado- não pelo socorro, que falhou da primeira vez, mas por Salvador, motorista de um dos caminhões da Globo. Não podia sair melhor: O fusca sai da estrada, dá várias cambalhotas e cai no barranco, com uma das portas abertas.

- O que aconteceu? Precisam de ajuda? A essa altura, há pelo menos umas duzentas pessoas no local, embora a policia federal já tenha liberado o transito para o intervalo antes da gravação da segunda cena: a explosão.

Francisco Cuoco, que assistiu à primeira mostra-se calmo, apesar da expectativa. Vereza Sorri, satisfeito com o sucesso de seu trabalho e Avancini já se prepara para o resto. As perguntas continuam insistentes:
- Precisam de transportes para as vitimas? Estou com o carro aqui...
Na confusão a fantasia se mistura com a realidade e, tomado de nervosismo, Toninho, um dos responsáveis pelo guarda-roupa, acaba se ferindo, quando vai apanha o paletó de Vereza dentro do ônibus: fica pendurado na janela pelo anel e machuca a mão direita.


FUMAÇAS E PERGUNTAS – Os preparativos recomeçam. Dois homens testam os extintores que deveram ser utilizados para apagar o fogo depois da explosão. A gasolina é espalhada sobre o carro. Avancini entra no caminhão da externa, senta na mesa de corte e com dois fones de intercomunicação no ouvido, chama todos os carros para a gravação:

- Alô, alô carro 1. Atenção

- Alô, alô carro 2. Atenção

O fusca azul-celeste entra em chamas, que vão crescendo, ficando cada vez maiores, até chegar à explosão, num grande estrondo. O fogo continua, sobe, levando a fumaça até quase ás nuvens. No carro de externa , as cenas se reproduzem: visto pelo vídeo , o incêdio é perfeito. Lá fora, as pessoas continuam se agitando, atraídas pelo movimento.

De repente, aparece um táxi. Freia bruscamente e dele salta vereza, correndo.
Gritando palavras assustadas, vai até o meio do barranco e volta-se para o ator que contracena com ele, o motorista de táxi:
- Que é isso, cara? (Corte).

Uma hora depois, o local estava novamente tranqüilo. Simone morreu? Foi acidente ou suicídio? As perguntas ficaram na fumaça e só serão respondidas na próxima semana, quando o capítulo for para o ar.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

REGINA DUARTE FALA DAS SUAS NOVELAS

Regina Duarte Entrevistadores: Ana Paula Goulart e Juliana Saba.

Qual é o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento? Regina Blois Duarte. Eu nasci em Franca, estado de São Paulo, em cinco de fevereiro de 1947. E qual é o nome e a atividade dos seus pais? Meu pai era Jesus Nunes Duarte, era militar, tenente do Exército. E minha mãe, Dulce Blois Duarte, nascida em Pelotas, no Rio Grande do Sul, pianista, professora de piano. Onde você estudou? Eu estudei primeiro na escola São Joaquim da Barra, onde eu vivi dos seis meses aos seis anos. A minha primeira infância foi lá, onde meu pai dava “tiro de guerra”. A minha primeira escola foi um maternal, um pré-primário, em São Joaquim da Barra. Quando eu tinha seis anos, meu pai entrou para a reserva. O exército reformou meu pai, ele “pôs o pijama”, como se diz, e nós mudamos para Campinas, onde ele achava que podia oferecer aos filhos mais oportunidades de estudo, de futuro. Em Campinas, nós moramos numa fazenda loteada, e foi lá que fiz o meu primeiro ano, numa escola que era uma baia de cavalos, ou de vacas, tipo um curral adaptado para sala de aula. Era de terra batida, passavam galinhas com pintinhos, porcas com porquinhos pelo meio da perna da gente, enquanto assistíamos à aula. Eu tenho uma lembrança muito vaga da minha primeira escola, esse grupo escolar de São Joaquim da Barra. Eu lembro vagamente que, um dia, eu estava brincando com os meninos e caí, ralei o joelho, e fui muito bem cuidada. Eu nunca vou esquecer o carinho com que as pessoas me trataram. “Nossa! Tanta coisa só por causa de um tombinho de nada”, eu pensei. E eu fui muito acarinhada. Essa é a lembrança mais forte que eu tenho desse período do grupo escolar de São Joaquim da Barra. Depois, estudei na escola mista Vira Copos, que depois virou Grupo Escolar Novos Campos Elíseos. Bom, aí eu já tenho memórias bem mais consistentes.

Como você começou a fazer teatro? Qual foi a sua primeira experiência como atriz? A primeira peça de teatro que eu li foi no ônibus, com um rapaz que tinha aberto um livro do meu lado, e eu fiquei filando o livro dele a viagem toda. Eu me interessei, porque era um livro onde os diálogos não eram denunciados por travessão, mas pelo nome dos personagens. E eu via: “Peter... Anne... Peter... Anne...”, e dizia: “Mas para que repetir o nome toda hora?” Perguntei a ele: “Por que esse autor repete o nome dos personagens do livro a cada fala?”. E ele disse: “Esse não é um livro de literatura, não é um romance. Isso é uma peça de teatro”. Eu achei aquilo tão engraçado. E a peça era o Diário de Anne Frank. Eu fiz amizade com esse rapaz, que era 12 anos mais velho que eu. Ele era ator, já tinha feito espetáculos em São Paulo, e foi através dele que eu me interessei pelo teatro. Quer dizer, eu já conhecia teatro, mas comecei a me interessar de outra forma. Até então, eu queria ser bailarina, pintora, escritora ou atriz de Hollywood, como a Marilyn Monroe. Como foi a sua primeira experiência em televisão? Eu estudava balé em Campinas, e o professor Mozart Xavier inscreveu o nosso grupo de balé no programa chamado Gincana Kibon, comandado pelo Vicente Leporace. A minha primeira visita a um estúdio de televisão foi nos estúdios da Record, ali perto do aeroporto de Congonhas, em São Paulo. E onde eu dancei uma czarda, uma dança húngara, uma coisa assim. Era um programa que ele tinha aos domingos, às seis da tarde, e onde crianças se apresentavam tocando algum instrumento, cantando e dançando, e o nosso grupo dançou. Então, essa foi a nossa primeira relação com a televisão. Depois disso, eu fiz muita publicidade, fotos, filmes. E um dos filmes de publicidade que eu fiz foi visto pelo Walter Avancini. Eu já fazia teatro amador desde os 14 anos e, aos 18, eu fui chamada pelo Avancini para fazer um teste, para uma novela que ele faria na Excelsior chamada A deusa vencida, com Tarcísio Meira, Glória Menezes, Altair Lima, muita gente bacana.

 E como foi a sua experiência na Excelsior? Foi maravilhosa. Eu tive muita sorte de ser dirigida pelo Avancini, que realmente é o grande mestre, é uma referência importantíssima para mim na teledramaturgia. Acho que o estilo Avancini está impregnado em tudo que nós fazemos até hoje. Ele era um diretor hiper exigente, mas gostava de mim, achava que eu tinha futuro, e me deu muita força, ele me ensinou muitas coisas. Gravávamos nos estúdios da Vera Cruz, nessa época, que ficavam a uma hora de São Paulo. Então, passava um ônibus que me pegava no apartamento, eu ia com meu pai ou com a minha mãe, ou com um dos meus irmãos, sempre. Enquanto eu não me casei, eu estava sempre acompanhada de alguém da família. E o Avancini não só me ensinava e exigia muito de mim – ele era muito rigoroso – como ele também pedia que eu conhecesse todos os departamentos que compõem a confecção de uma teledramaturgia. Ele gostava que eu me interessasse pela iluminação, pelo som, pelo posicionamento do microfone, pelas câmeras, gostava que eu conhecesse a lente. Nessa época, eram aquelas câmeras enormes, que rodavam as lentes, então nós sabíamos quando tinha mudado de lente. Ele gostava que soubéssemos que lente estava no ar para sabermos em que ângulo estávamos sendo gravados. O Avancini foi o grande mestre, porque ele era muito impiedoso, ele exigia mesmo, era muito rigoroso e eu aprendi muito com ele.

Como você foi para a TV Globo? Acho que eu fiquei quatro anos na Excelsior, fiz muitas novelas. Aí, a TV Excelsior começou a ter problemas, começou atrasar os salários dos atores, foi um desespero. Eu tinha acabado de casar, de comprar carro, apartamento, móveis e estava vivendo um momento muito difícil. Então, o Boni me chamou e ofereceu um contrato na TV Globo para fazer Véu de noiva, que era a primeira novela urbana, contemporânea, daquela fase pós Sheik de Agadir, A ponte dos suspiros. Era uma novela que pretendia retratar o universo da classe média do Rio de Janeiro nos dias de hoje, digamos. Estávamos no ano de 1968, 1969, por aí. Eu sei que eu estava recém-casada, mudei para o Rio de Janeiro e comecei a fazer essa novela, que foi um grande sucesso. A Janete Clair também foi uma pessoa que me deu muita força, porque ela sempre me ofereceu personagens maravilhosos. As heroínas da Janete são inesquecíveis.

Você se lembra dessa sua personagem na novela Véu de noiva? Era a Andréa. Ela tinha uma cicatriz no rosto, ela sofria um acidente. Eu me lembro vagamente. Ela era apaixonada por um rapaz que era piloto de corrida de automóveis. E era uma época em que começavam as corridas. Aquele de Brasília, o nosso primeiro campeão da história do automobilismo brasileiro, Nelson Piquet, estava começando a ganhar todas as corridas. Era uma fase de descoberta, para o brasileiro, das corridas de automóvel.

Como era a TV Globo nessa época? Como eram as gravações das novelas, como era a estrutura da emissora? Eu estava descobrindo, deslumbrada, um novo mundo, uma nova realidade. Era um grupo de pessoas apaixonadas pelo que fazia, querendo fazer o melhor, dando tudo de si, vestindo a camisa, como se dizia. Comparado com hoje, com as condições de trabalho de hoje, era tudo apertadinho, era um conceito japonês de espaço, os estúdios eram pequeninhos, atravancados de cenário. Eram quatro estúdios: A, B, C e D. Depois de Véu de noiva, você fez Irmãos Coragem, que foi um grande sucesso.

Conta um pouquinho como foi essa experiência. Como era a sua personagem, como era a história e como foi fazer essa novela, um grande sucesso da Janete? Foi delicioso, porque o meu personagem era uma menina caipira, que vinha do interior, casava com um jogador de futebol. E era muito engraçada, apesar do pai alcoólatra. Ela cometia muitas gafes, levava um tempo enorme para entender a cidade grande. E sofria muito, mas, ao mesmo tempo, era uma menina de muita personalidade, que brigava pelo que queria. E muito inocente também, bem como eram as meninas daquela época. Eu adorei, porque pude fazer com sotaque, que era uma coisa que eu gostava. Adorava esse personagem.

Como era fazer dupla romântica com o Cláudio Marzo? Era ótimo, porque eu e o Cláudio nos dávamos muito bem. Ele era muito atencioso, muito cavalheiro, muito gentil comigo. Eu percebia que ele tinha um tratamento muito delicado comigo, que às vezes ele não tinha com outras pessoas. Ele era todo estourado, tinha fama de bad boy, mas sempre foi de uma gentileza impressionante comigo, de uma delicadeza... Nós nos dávamos super bem. Mas também nunca ficamos amigos íntimos, era um relacionamento mesmo de estúdio. Com o Francisco Cuoco, eu já tive um relacionamento pessoal. Saíamos juntos, íamos ao teatro, ao cinema: ele e a Gina, eu e o Marcos – na época, eu estava casada –, saíamos os dois casais, almoçávamos aos domingos. Depois tivemos filhos e reuníamos as famílias. Então, era uma relação muito mais pessoal. Engraçado, eu acho nunca vi o Cláudio fora do estúdio, nem mesmo por acaso.

Você se lembra de alguma cena marcante de Irmãos Coragem? Eu me lembro de ter assistido à cena quando João Coragem acha o diamante. Isso eu me lembro de ter visto. Era um momento muito impressionante da novela, e eu ficava assistindo aquilo encantada com as interpretações. A Glória Menezes estava maravilhosa! Ela fazia uma mulher com três personalidades. Era deslumbrante o trabalho dela, de todos. O Tarcísio também, espetacular; Cláudio Cavalcanti era um dos três irmãos; Zilka Sallaberry, querida, a mãezona. Foi um período muito bonito, muito gostoso.

Em seguida, você fez Minha doce namorada. O que essa novela representou na sua carreira? Minha doce namorada foi uma novela deliciosa de fazer porque era engraçada, era uma comédia. Eu adorava. Além de toda aquela história dela, de viver num parquinho de diversões, tinha a tia Miquita, tinha a relação com o seu Pepê, que era o milionário. Ela ia servir cafezinho na empresa dele, eles se conheciam no elevador e ficavam amigos. Ela não sabia que ele era o patrão, o dono daquele império, e ela era muito espontânea, então ficaram grandes amigos. E era uma novela deliciosa, que me deu muito prazer, eu fazia com alegria. A minha personagem era super astral, aquela menina bacana mesmo! Regina, foi a partir dessa novela que você ficou conhecida como a Namoradinha do Brasil, não foi? Não exatamente aí. Esse título só veio em 1975, 1976. Mas, na verdade, acho que essa novela, com esse título, ficou um pouco marcada, eu fiquei relacionada com esse título Minha doce namorada. Era Patrícia o personagem que eu fazia. Mas, nessa época, ninguém na imprensa se referia a mim como “minha doce namorada”. Isso só veio a acontecer quando eu parei de fazer televisão por três anos, porque eu sentia que precisava me reciclar, reabastecer-me como atriz, e fui fazer teatro. Fui para o teatro fazer Réveillon. Logo depois que eu estreei Réveillon, que foi uma peça polêmica, que deu bastante o que falar, eu dei uma entrevista para as páginas amarelas da revista Veja e o título era: “A ex-namoradinha do Brasil”. Foi a primeira vez que eu me recordo de ter lido este título se referindo a mim, mas já como “ex”, porque eu já estava rompendo com essa imagem, daquela moça sempre igual, que vinha fazendo nos últimos anos. Eu passei oito anos fazendo sempre meninas muito sofredoras, muito submissas, dóceis, passivas, sem muita definição dos próprios desejos, sem o autoconhecimento. Meninas subjugadas mesmo pela autoridade do pai, ou do marido, ou do namorado, da família ou das instituições. E foi com o Réveillon que os autores começaram a perceber que, para eu me realizar, para que me sentisse feliz, eu estava precisando alçar vôos em outros territórios, fazer personagens que pudessem refletir a mulher com mais abrangência; não só um lado da mulher, esse lado mais passivo. Então, eu acho que o título dessa novela veio inspirar a imprensa, alguns anos depois, a me chamar de “namoradinha”.

 E esse apelido incomodou você? Não, nunca me incomodou, pelo contrário. Até porque, quando ele veio, eu já tinha tido a chance de abrir novas frentes para os meus trabalhos, novas possibilidades para que os autores e os diretores pudessem me ver com outros olhos. O problema foi no período em que eu gostaria de receber personagens que refletissem um pouco mais a mulher que eu estava me tornando. Eu já estava casada, já tinha filhos, já me sentia supermulher, dona do meu nariz, e continuava fazendo aquelas garotinhas de 18 anos absolutamente inocentes, bobinhas. Eu ficava incomodada com isso. A cada novela, eu falava: “Ah, tomara que agora a minha personagem possa estar mais próximo da pessoa que eu sou. E que eu possa usar a pessoa que eu sou a serviço dela”. E eu tinha sempre que voltar e fazer aquela menina que, um dia, eu tinha sido lá atrás, quando eu ainda morava no interior.

Voltando um pouquinho­, em Selva de pedra, você fez Simone, que foi outro personagem marcante na sua carreira. Você poderia falar um pouco da personagem? Selva de pedra foi uma novela que me deu muita chance, porque eu fazia dois personagens. A Simone, num determinado momento, profundamente deprimida, sofre um acidente. Ela havia perdido o homem que amava para a Fernanda, sua maior rival, interpretada pela Dina Sfat. A Simone entra no carro desesperada e sai dirigindo feito uma louca. A empregada também entrou no carro, no último minuto, e as duas saem pela serra de Petrópolis. O carro despencava montanha abaixo, explodia, incendiava e o meu personagem era dado como morto. Ninguém sabia que a empregada estava com a Simone. Eles encontraram um corpo carbonizado no carro. A Simone tinha saído do carro se arrastando, toda machucada, toda quebrada, mas ninguém sabia. Então, ela ia para a França, estudava artes plásticas e voltava como Rosana Reys, consagrada artista, que tinha vencido em Paris. Janete Clair é maravilhosa!

 Como foi o seu trabalho em Carinhoso? Como foi esse trabalho? Carinhoso era com o Cláudio Marzo, mais uma vez. Ele fazia o Humberto. E tinha o Marcos Paulo. Ela ficava oscilando a novela inteira: ela gostava dos dois, ela amava os dois. Ficava aquela questão, até o final: “Com quem que ela vai ficar?”.

Você se lembra de alguma cena marcante ou de algum episódio interessante dessa novela? Lembro de uma festa gravada durante uma externa, numa casa em São Conrado. Era uma festa, eles construíram um tablado onde se dançava. Eu me lembro bem dessa noite de gravação. Foi uma noite longa. Gravamos essas cenas até muito tarde. Eu tinha em mente o tempo todo a Kim Novak, em Picnic. Era a minha inspiração nessa noite, porque provavelmente a situação em que o personagem estava lembrava esse filme da minha adolescência.

 Em seguida você fez mais uma personagem da Janete Clair, a Bárbara, em Fogo sobre terra. Como foi para você construir esse personagem, que era cega? Foi ótimo porque me deu a possibilidade de fazer um estudo sobre o universo das pessoas cegas. Eu estive no Instituto dos Cegos, onde eu aprendi muita coisa de como eles se comportam, como eles fazem para interagir socialmente, quais são as grandes dificuldades que eles enfrentam para viver sem enxergar nesse nosso mundo. E a personagem sofria de cegueira psicológica, não era totalmente cega. Era uma menina que via, mas que, de repente, em momentos de grande ansiedade, ela perdia a visão. O que tem de maravilhoso nesse trabalho de ator é que ele nos permite investigar sobre coisas às quais, normalmente, não teríamos acesso. Com essa novela, por exemplo, eu pude ter acesso à escrita braile, a todos os sinais, a todos os códigos que as pessoas cegas têm para se relacionar com o mundo físico. Foi uma experiência muito rica.

Depois desse trabalho, você se afastou um pouco da televisão, não foi? É, eu me afasto. Eu peço uma licença para voltar ao teatro e tentar recuperar minhas raízes de atriz, para me reabastecer, para ver se eu consigo impressionar os diretores e produtores de TV de que eu sou uma atriz que tem possibilidade de fazer personagens mais diversos, mais de acordo com o meu grau de maturidade, de experiência de vida. Eu já tinha um filho de cinco anos nessa altura, queria interpretar mulheres um pouco mais maduras, mais próximas da minha realidade.

Por quê? Porque a telenovela se apóia muito no que nós somos. E como ela é feita com tanta urgência, o ator não tem muito tempo para elaborar coisas que são muito distantes dele, ele tem que usar a si mesmo como arsenal de experiências emocionais para os papéis que ele interpreta. Então, se o personagem estiver muito distante, é difícil, corre-se o risco de fazer uma caricatura, porque não dá tempo de elaborar. Ou então, no caso de uma protagonista, se você acerta no estilo, vai embora: como aconteceu depois com a Porcina, que tinha um sotaque, um determinado jeito de agir. Vamos embora, e vai ser assim a novela inteira. Mas, em geral, trazemos muito o personagem para como nós somos, como estamos naquele momento da nossa vida. Você voltou, depois, para interpretar a Nina na novela.

 O que a atraiu na personagem, quais características dela fizeram você aceitar o convite para voltar? Não era bem assim que a questão se colocava. A verdade é que nós tínhamos iniciado uma novela algum tempo antes, e essa novela já estava com 30 capítulos gravados quando foi censurada. Era Despedida de casado. Ela foi proibida na véspera de estrear. Eu lembro que colocaram algum compacto no ar e toda a diretoria da TV Globo se reuniu e disse: “E agora, o que a gente faz? Porque essa novela não pode ir ao ar...” A Censura não queria que se falasse em desquite, falar em mulher separada era considerado subversivo. Então, o Walter George Durst foi chamado, e havia uma história, que é a Nina. Essa história começou a ser gravada a toque de caixa, para ser colocar no ar um mês depois, após algum compacto que ficou preenchendo o espaço, enquanto não havia um produto. E Nina foi um presente, porque era o meu primeiro personagem que desafiava alguma coisa preestabelecida. Um personagem que questionava o ensino, a pedagogia da época, e tinha uma relação com os alunos muito mais aberta, muito mais sincera, não tão dentro daqueles códigos disciplinares rígidos. Era uma mulher interessada em transmitir conhecimento, em aprender junto com os alunos, e não ficar só na teoria, investigar mesmo a vivência de cada aluno. Era uma história muito linda. E tinha ainda o Antonio Fagundes, com quem eu contracenei pela primeira vez, fazendo um anarquista. A novela se passava nos anos 1920. Eu lembro que era uma época em que as mulheres começavam a cortar o cabelo, e eu também cortei o meu cabelo a la garçonne. E eu me lembro muito dessa cena, quando eu cortava o cabelo e passava meio que por uma execração pública. As pessoas diziam: “Ai, que horror! Que coisa terrível! Que coisa agressiva!”. Uma mulher cortar os cabelos, naquela época, era uma atitude considerada de rebeldia, uma atitude muito revolucionária.

Você se lembra da repercussão desse trabalho junto ao público? Lembro, sim, foi legal. Essa era uma novela das dez, tinha menos audiência que a das oito, e era uma audiência diferente. Foi o horário em que passou também O bem-amado e tantas outras novelas.

O elenco que fez Nina era o mesmo de Despedida de casado, a novela que foi censurada? Era exatamente o mesmo. Depois de Nina, você fez o seriado Malu Mulher.

Você participou da criação do seriado? Sim, participei da criação de Malu Mulher. Quando o Daniel Filho veio conversar comigo, para me contar do projeto que ele e o Boni tinham de fazer seriados – Aplauso, Carga pesada, Plantão de polícia e Malu Mulher –, eu estava recém separada e ele me disse: “Eu gostaria que você interpretasse um pouco a sua história. Eu gostaria do seu depoimento pessoal também.” Então, eu participei de reuniões de criação, aprendi muito. O Daniel é outro grande mestre. E ele me abriu as portas desse outro lado. Então, eu já não ficava mais como atriz simplesmente, era uma pessoa que estava envolvida com as músicas, com a sonoplastia, com a luz, com os textos, com o figurino, com a Marília Carneiro... Todo mundo trabalhando em conjunto para realizar um trabalho o mais honesto, o mais sincero. Era um monte de mulheres: tinha a Graça Mota, Denise Saraceni... Eu me lembro de que era um batalhão de mulheres, todas depondo no programa, cada uma com a sua experiência. E tínhamos conversas intermináveis sobre a nossa condição de mulheres emancipadas querendo assumir uma responsabilidade sem o paternalismo de pai, de marido, sem se pendurar no homem para sobreviver, querendo dar dignidade a nossa recém conquistada liberdade, com muita responsabilidade, com filhos. Foi um período muito rico porque, na minha vida real, eu estava vivendo uma situação igual a do meu personagem. Eu sinto que nos dois anos de Malu eu cresci, amadureci como pessoa uns dez anos. Eu levaria dez anos para experimentar ou refletir sobre todos aqueles temas que o seriado me propunha na época. Foi muito importante para o meu desenvolvimento pessoal, o que acabou se refletindo, de uma maneira ou de outra, no meu trabalho de atriz.

Você lembra como foi escolhido o nome do seriado? Eu tive o privilégio de ser convidada a dar nome ao seriado. Eu lembro que Daniel falou assim: “Como é que você gostaria que ela se chamasse?”. E eu disse: “Eu gostaria que fosse uma homenagem ao primeiro personagem que eu interpretei na televisão, que era Malu”. Porque eu sentia que esse trabalho ia ser um recomeço, um “começar de novo”, como dizia a música do Ivan Lins, interpretada pela Simone, que depois foi escolhida para a abertura. “Eu sinto que eu estou começando de novo a minha vida, em todos sentidos: pessoal, profissional. E para começar de novo em televisão, eu preciso me chamar Malu”, eu disse. Ele aceitou e eu tive o privilégio de batizar esse personagem, que acabou rodando o mundo inteiro.

 Como você avalia a forma como foram tratados alguns temas polêmicos no programa, como aborto, masturbação, separação? Eu acho que era uma vontade de falar das coisas que nos inquietavam, das nossas preocupações, das nossas conquistas, das nossas esperanças e alegrias. Aquele grupo de criação estava muito junto e, depois de tantos anos de censura, querendo muito depor, comunicar coisas que estavam precisando ser ditas, expressadas, colocadas para fora, colocadas em discussão na sociedade. Havia uma vontade imensa de partilhar sentimentos, dúvidas e necessidades. E Malu era isso, era o canal de um grupo grande de autores, porque cada história tinha um autor, Armando Costa, Lenita Plonczynski... Eu nem vou começar a falar os nomes aqui porque dificilmente vou conseguir lembrar de todos, mas era um grupo grande de gente que estava vivendo esta situação, ou estava entendendo perfeitamente o que aquela mulher recém separada, recém desquitada estava vivendo. Quer dizer, ela estava lutando para preservar uma auto-estima, lutando para dar conta de uma responsabilidade que ela nunca teve, que sempre esteve a cargo do homem, decidir sobre o destino dela, da prole, de tudo. Então, essa mulher assumindo o controle da própria vida estava muito assustada, muito insegura e com a auto-estima muito irregular. O programa vinha para dar força a ela, para dizer: “Você não está sozinha. Existem muitas e muitas e muitas mulheres vivendo a mesma coisa. Vamos juntas!”.

 Você se lembra de algum episódio que tenha lhe marcado mais? Foram vários. Eu me lembro bastante daquele do caroço no seio, do Doc Comparato. Acho que era a primeira vez que se falava em câncer de mama. A Malu tinha um caroço e passava todo o episódio achando que podia estar com câncer. No final descobria que não estava, mas, de qualquer maneira, o assunto era debatido à exaustão ao longo do programa, com depoimentos de médicos sobre prevenção, auto-exame. Isso há quantos anos? Vinte e seis anos atrás. Depois tinha o aborto também, que era um programa muito forte, em que havia duas correntes: uma era a favor, dizia que a mulher é dona do seu corpo e que ela decide se quer ou não, se pode ou não pode ter um filho; e havia outra, que tinha esse raciocínio de que Deus mandou, tem que ser.

Como era a repercussão da Malu com o público? O programa entrava muito tarde. Ele estava proposto para ir ao ar 22h30, e nunca entrava antes. Às vezes, entrava depois da meia-noite, se a censura achasse que o tema estava forte. Ainda havia resquício de censura nessa época. Eu me lembro do Daniel Filho ir a Brasília muitas vezes para brigar pela liberação de um episódio, brigar contra alguns cortes que mutilariam totalmente o episódio. Gravar e por no ar era uma guerra e, quando ia ao ar, era um milagre. Os tempos eram mesmo de guerrilha, cada episódio era lutado, trabalhado, defendido com unhas e dentes por essa equipe liderada pelo Daniel e pelo Boni.

 Regina, depois você dirigiu um episódio de Caso especial, A cartomante. Conta como é que foi. A cartomante foi um presente do Daniel Filho. Nessa época, ele tinha era diretor artístico da Globo e tinha criado esses Casos especiais, que eram histórias adaptadas de algum conto, de alguma peça literária. Eu me lembro de que havia uma adaptação da Lenita Plonczynski sobre a história de A cartomante, do conto de Machado de Assis. E eu me apaixonei pela história. Quando terminou Carinhoso, eu estava grávida da Gabriela, e estava num estado de felicidade tão grande que pedi para dirigir esse episódio, e ele concedeu. Então, foi assim um período maravilhoso. Eu fiquei dirigindo superamparada, claro: tinha um diretor de imagem maravilhoso, um diretor de fotografia, Moacyr Deriquém, fazendo a produção, e eu dirigi o José Wilker e a Renata Sorrah nesse episódio. O marido dela era o Herval Rossano, esse era o triângulo de A cartomante. Foi uma experiência genial, onde eu pude brincar de Deus, como os diretores. Quebrei muito a cabeça, porque sempre achamos: “Ah, eu sei...” Chega na hora, ficamos perguntando: “Onde é que põe a câmera?” Era uma loucura! Mas decupei, estudei muito, levei a sério mesmo. E fiquei muito feliz com todo o processo, do início ao fim. Inclusive, depois, a edição, pós-produção e sonorização. E, quando foi ao ar, a Gabriela estava nascendo praticamente. Quase que ela nasce nos estúdios da Globo.

Como foi a sua experiência com Luana Camará, na novela Sétimo sentido, em 1982? Sétimo sentido foi uma grande novela! Janete Clair estava no seu apogeu. Ela criou dois personagens para mim. Mais uma vez, eu fazia duas mulheres: a Luana Câmara, que incorporava uma atriz chamada Priscila Capricce. Luana era uma paranormal, tinha visões do que ia acontecer. Era uma mulher muito sofrida, uma moça muito assustada, porque a qualquer momento ela poderia ter a visão de uma tragédia e, o que é pior, ela sempre teve visões de tragédia, e ficava muito apavorada. Num certo ponto da história, ela incorpora uma atriz muito maluca, que acaba se apaixonando pelo homem que ela mais odiava na vida, que era o Tião Bento, interpretado pelo Francisco Cuoco. A Luana tinha ódio desse homem, porque ele tinha se apossado de uma série de coisas da família dela e tinha prejudicado demais os pais dela. Eu não me lembro bem da história, eu sei que ela odiava o tal do Tião Bento, que era meio vilão. E quando recebia a tal Priscila Capricce, ela se apaixona pelo Tião Bento. Então, ele fica nervoso, porque nunca sabe que mulher é essa que ele tem. Ele tem duas. Era uma história muito interessante, que me deu muita oportunidade. Eu me lembro bem da direção do Roberto Talma, também foi muito boa. O Talma foi supercriativo, fazendo cenas muito lindas. E eu vibrando, apaixonada, porque foi uma grande personagem! Foram duas grandes personagens. Você interpretou várias personagens criadas pela Janete Clair.

O que significou para você interpretar os textos dessa autora? Um parque de diversões! Porque ela tinha uma imaginação extraordinária! Eu viajava com ela. A Janete Clair me levava para situações inimagináveis. Ela era de um poder romântico, dramático, que dificilmente eu vi depois. Ela criava as situações mais malucas, mais extraordinárias. As heroínas dela viviam em estado de êxtase, era uma coisa deslumbrante. Eu adorava fazer as novelas da Janete porque eram aqueles folhetins mais malucos que eu tinha lido na minha adolescência, sem muito compromisso com a realidade, embora sempre com uma roupagem realista. O interior dos personagens era absolutamente livre, delirante, apaixonado, arrebatado. Se os personagens amavam, amavam; se odiavam, odiavam. Eles se metiam nas histórias mais incríveis, era uma loucura, era uma viagem deliciosa. Fazer uma novela da Janete é como se fosse uma montanha-russa, você está lá em cima, daí despenca montanha abaixo; grandes amores, grandes paixões. E todas essas histórias que a nossa imaginação busca, quer e precisa. Essa era a proposta da novela, de realmente levar o sonho, o delírio romântico. Eu gostava demais das coisas que ela propunha como autora e, também, das coisas que ela propunha para mim como atriz. Eram sempre grandes desafios, porque não era nada fácil. Em Selva de pedra, por exemplo, eu ficava encarcerada em um porão capítulos e mais capítulos conversando com um raiozinho de sol que entrava. “Bom dia, raiozinho de sol”, eu dizia. É difícil você conversar com um raio de sol. Se precisa entrar no delírio do autor, ou na situação de fragilização da personagem, de já estar meio fora de si por estar presa ali há tanto tempo, precisando se manter viva e com a sua inteligência aguçada. Quem não entrasse, realmente, olhava de fora e falava: “Que coisa absurda! Uma mulher falando com um raiozinho de sol”. Mas o que a Janete exigia era um mergulho integral na situação proposta. E a situação proposta era essa: a mulher estava ali há semanas e, para não enlouquecer, começava a conversar com um raio de sol. Então, isso eu acho o símbolo máximo do universo “janetiano”, se é que o termo cabe. Conte sobre a novela Roque Santeiro e sobre a Viúva Porcina, sua personagem. Roque Santeiro também foi outro parque de diversões. Eu ria o tempo todo. Quando eu recebi e li o capítulo pela primeira vez, eu ri. Enquanto eu decorava, estudando o texto em casa, eu ria. Eu ria nos ensaios, eu ria gravando: “Pára, eu não estou agüentando, de tanto rir”. E ria depois, em casa, assistindo aos capítulos. Eu me diverti demais. Com a Porcina, eu aprendi a ter uma atitude positiva, de auto-estima, de acreditar que não temos que ficar acanhadas, que não temos que ficar presas a convenções: não se pode ter vergonha de si mesmo, das coisas que se quer, dos sonhos que se deseja alcançar. Para mim, a Porcina é sinônimo de alegria e de liberdade como mulher. E também me ensinou muito, porque eu era toda ton sur ton, toda recatada, tímida, só usava o brinco que combinava com o sapato, com a bolsa. Com a Porcina, eu percebi que podia ser livre, podia usar qualquer cor, que não havia regras, o que havia era o desejo de se sentir amada, feliz, de bem com o mundo, com a vida. E ela era isso. Uma mulher que me ajudou muito a me desiludir, a perceber que eu não precisava me levar tão a sério. Foi difícil compor essa personagem tão diferente de você? Não, ela vinha pronta, estava toda escrita ali. E ainda tinha o Marco Aurélio, que fazia o figurino. Ele trazia aquelas roupas maravilhosas, aqueles montes de anéis, brincos, colares, aquele laçarote no cabelo. Era ler, decorar, ir lá e fazer o que estava escrito. O Aguinaldo Silva estava no seu apogeu. Se bem que ele teve um novo apogeu com a Senhora do destino. Ele é genial! Então, o Aguinaldo Silva fez um trabalho em cima da história do Roque Santeiro, que o Dias Gomes criou. Ele fez um trabalho espetacular e desenvolveu os personagens magnificamente. E era uma novela de um momento muito especial também. Todo mundo tinha excelentes personagens. Têm novelas que são assim: todos os personagens são muito bons, os atores são excelentes, a direção é espetacular. Aí, acontece um Roque Santeiro, porque estava todo mundo lindo, todo mundo bem. Como era contracenar cotidianamente com Lima Duarte e José Wilker? Contracenar com o José Wilker é muito divertido, porque o Wilker é engraçado, ele é irônico, é muito inteligente, então tem sempre um olhar inesperado sobre a cena. E o Lima Duarte – Meu Deus! – esse ator é de uma dedicação, de um entendimento, de uma profundidade nas propostas do autor. Era uma escola trabalhar com o Lima e com todo mundo. Eu me lembro do Zé da Medalhas, interpretado pelo Armando Bogus. Era um elenco muito bom. E estava todo mundo tão feliz por fazer aquele trabalho, que esse sentimento transbordava pela telinha e invadia realmente a casa das pessoas, contagiava todo mundo. O mesmo prazer que nós tínhamos fazendo Roque Santeiro era o prazer que as pessoas diziam que sentiam assistindo a novela, depois.

 Qual foi a cena da novela mais marcante para você? Nossa, eu me lembro de tantas! Difícil destacar uma. Lembro de uma cena, quando o Sinhozinho viajava e o Roque ficava hospedado na casa da Porcina, que é quando ela começa a se interessar por ele, com ele tocando violão numa rede. Lembro de outra, no cinema. E eu me lembro de uma briga com a Matilde, interpretada pela Yoná Magalhães, em que chegávamos vestidas iguais num evento qualquer, e uma agarrava o cabelo da outra, tinha uma briga de mulher daquelas de sair faísca. Eu me lembro de tanta coisa! Lembro-me de uma cena em que o Sinhozinho dava um anel para a Porcina: quando ela olhava, via no anel o mesmo símbolo que havia na vaca e jogava o anel longe, gritando: “Está pensando que eu sou sua vaca?! Quero esse anel, não!”, e ficava furiosa. Eu me lembro de muita coisa. Porque todas as cenas eram divertidas, preciosas.

 Você gostou do final da novela? Gostei, gostei. Acho que foi bem coerente. E foi muito coerente com o que eu esperava que fosse acontecer com a Porcina: ela escolheu o Sinhozinho, embora tenha ficado muito impressionada com o Roque. Mas o Roque era tão diferente dela que, para mim, era meio fácil supor que ela ia acabar escolhendo o Sinhozinho.

 Em seguida, você fez Vale tudo, sucesso do Gilberto Braga. Como foi esse trabalho? Vale tudo foi realmente um momento muito importante para mim, porque eu tinha feito Roque Santeiro e tinha muito medo. Porque é muito complicado para um artista fazer um trabalho após um grande sucesso, uma unanimidade como tinha sido o Roque Santeiro. Então, o Gilberto Braga me fez uma proposta de um personagem encantador, irresistível, que foi a Raquel Acciole do Vale tudo. Imediatamente, eu percebi que não precisava ter medo da continuidade da minha carreira. Porque quando o Roque Santeiro acabou, eu disse: “Meu Deus! E agora? O que eu faço? O que vem por aí? Como é que eu realizo alguma coisa sem sentir que eu estou fazendo menos, ou que eu estou andando para trás?” E, ao contrário, Vale tudo veio e me deu toda a força, no sentido de que eu podia acreditar que tinha muita coisa ainda para fazer depois da Viúva Porcina, ou além da Viúva Porcina.

Como você avalia o tratamento dado a temas como a honestidade e a ética nessa novela? Era um assunto importante. Acho que o Brasil precisa dessa discussão. Precisava e continua precisando. Acho que estamos sempre precisando discutir a ética e os valores, o que é certo e o que é errado, um comportamento moral adequado e civilizado. Eu lembro que na época era importante falar desse conceito, do que é ser honesto, o que é ser conseqüente, coerente. Porque vivemos numa terra do “vale tudo”, onde as pessoas vivem situações impunes. Acho que a novela sacudiu um pouco as mentes a respeito desse fato, de termos que lidar o tempo todo com impunidade, com negligência e com a fragilidade moral, mesmo. Você se lembra de cenas marcantes ou de alguma cena especial? Lembro, lembro. Tiveram duas cenas muito fortes. Uma foi o primeiro encontro da Raquel com a Maria de Fátima, algum tempo depois que ela vende a casa da família e foge para o Rio de Janeiro com o dinheiro. Raquel vem para o Rio e passa a procurar a filha, até que elas se encontram. Eu lembro que era uma cena de nove páginas, uma cena imensa que o Dennis Carvalho ensaiou dez vezes e, em seguida, deu o almoço. Era um suspense. Ensaiou dez vezes, deu o almoço e falou: “Depois do almoço, a gente grava”. E na hora de gravar tinha todo um clima no estúdio, porque era o grande encontro das duas. Depois teve uma outra cena, que eu acho que foi muito importante, a cena em que uma mala de dólares que havia sido encontrada desaparece. E ela acusa o Ivan, o homem que ela amava, de ter roubado os dólares. Ela é muito cruel com ele, e ele fica muito mal. Ela não consegue acreditar que possa ter sido a filha, acha que foi ele que roubou os dólares. Eu lembro que essa cena foi definitiva para o caminho do meu personagem. A partir daí, ela já não é mais a mesma pessoa. É como se ela se tornasse um outro ser, desgarrado da sua essência. Então, ela começa a lutar para se apegar aos valores materiais, exatamente para ganhar dinheiro e tornar-se uma grande empresária da comida. Então, são essas duas cenas. E o final também, quando o Marco Aurélio embarca no avião, dá uma banana para todo mundo e foge impunemente de toda a situação terrível que ele tinha criado. Como é para você fazer sucesso internacionalmente? Vale tudo, por exemplo, foi uma novela que fez muito sucesso no exterior. Inclusive, em Cuba, alguns restaurantes passarão a ser chamados de “Paladar” por causa da novela. É ótimo, muito bom. E eu fiz ótimas viagens por causa disso. Fui convidada para ir a vários países, inclusive Cuba. Fui três ou quatro vezes, e sempre foi muito bom. Estive na Holanda, em Mônaco, na Itália, na Alemanha, na Espanha, e fui muito bem recebida em todos esses lugares. Fiz viagens lindas, sempre em função do sucesso das novelas brasileiras nesses países. Então, isso é maravilhoso. Fora isso, acho que o grande prazer mesmo é na hora em que estamos gravando: todo o resto é conseqüência. Quando vai bem, ótimo. Mas eu acho que o grande prazer para um ator, realmente, é na hora em que ele está ali interpretando aquelas cenas. Esse é o grande momento. Tudo que vem depois, quando vem, se vem, do jeito que vem, é ótimo. Mas se não vem, também, o grande prêmio já aconteceu: é ter a possibilidade de viver uma outra vida com muita intensidade. Da mesma forma que você fez vários trabalhos com a Janete Clair, você também fez com o Gilberto Braga. Como é para você interpretar os textos desse autor? Como é a sua relação com ele? É ótima, porque ele é um grande autor e tem um texto muito bom. Tem um texto bom de dizer, coerente, conseqüente, tem substância. Gilberto Braga tem uma cabeça que eu admiro. Ele escreve um pouco parecido com o jeito que eu penso, como eu vivo, com os valores que eu tenho. Gosto muito do Gilberto. Gosto muito do Gilberto Braga e do Manoel Carlos. Gosto de todos. Mas, digamos assim, com esses dois eu tenho uma identificação profunda, com a forma como eles vêem o mundo, como os personagens deles se colocam nas situações. Tem uma psicologia aí com a qual eu me identifico muito. Depois veio a Maria do Carmo, em Rainha da sucata. Como é que foi o seu trabalho? Rainha da sucata foi genial! Que personagem! Gente, eu não tenho mais palavras. Cada um que nós relembramos aqui é mais impressionante que o outro. A Maria do Carmo era extraordinária, tinha muita força. Ela tinha um sonho de se casar com aquele rapaz, por quem ela fora apaixonada no colégio, muitos anos atrás. Ela compra esse casamento, mesmo sabendo que ele tinha sido responsável por uma grande humilhação que ela sofreu na festa de formatura. Então, era um personagem muito forte, uma mulher que cai, levanta, cai de novo. Veio do nada, torna-se poderosa, perde tudo, levanta a cabeça e vai em frente. Ela tem uma energia interior linda! Adoro personagens assim, porque eu preciso dessas mulheres para acreditar que eu também sou capaz de levantar a cabeça, de seguir em frente, de tropeçar, cair, levantar, sacudir a poeira. Essas mulheres sempre me ajudaram muito a ser uma pessoa melhor, com mais fé na minha própria força, na minha capacidade de recuperação, de construção, de reconstrução, de manutenção. Algumas coisas acontecem no momento em que você está precisando de uma palavra, de um exemplo, de um toque, e a literatura, o cinema e a televisão podem fazer isso por nós. Como atriz, então, eu tenho acesso a esse universo muito de perto. Posso ter acesso também indo ao cinema ou assistindo a uma telenovela, mas eu trabalho profundamente com todas essas possibilidades de superação, de recuperação, de enfrentamento das dificuldades. E isso não tem preço. Acho que nós nos mantemos à tona, nessa vida, graças a essa energia que nós somos obrigados a buscar não se sabe onde para poder resistir. Porque a vida é feita de tantas adversidades, tantas perdas, tantas dores, tanto sofrimento, tanta injustiça, e muitas vezes nós achamos que vai faltar essa energia, mas vem um personagem da ficção e diz assim: “Vai lá que você é capaz. Você pode dar volta e seguir em frente”. E quando isso acontece é tão bom! Eu fico tão grata quando eu vou ao cinema e assisto a uma coisa que ilumina o meu caminho. Porque, às vezes, eu estou na escuridão, não sei para onde vou, não sei se tenho forças para ir a algum lugar e, então, eu assisto a um filme que não tem nada a ver com a minha história, mas percebo que se eu tiver fé, se eu acreditar, se eu verdadeiramente quiser, eu posso ser capaz de modificar o mundo, partindo de uma modificação interior, de uma pré-disposição, de uma crença. Você vê alguma semelhança entre a Maria do Carmo e a Viúva Porcina? Claro, são mulheres fortes, mulheres que têm essas características todas das quais eu estou falando, mulheres que têm uma energia de não se conformar com as perdas, com as derrotas, que querem sempre refazer e construir. Eu gosto dessas mulheres. Acho que elas são irmãs. Malu, também. E as Helenas do Manoel Carlos também são mulheres que desenvolveram uma força interior grande, de não se deixarem derrotar pelas dificuldades. Você destacaria alguma cena em Rainha da sucata? Eu destacaria a cena final, com a Laurinha [personagem interpretado por Glória Menezes] se atirando do edifício. Eu me lembro muito bem de um flashback em que eu e o Tony Ramos voltamos a ter 14, 18 anos, sei lá. Esses milagres que a maquiagem e o figurino fazem, modificando a gente. Essa cena foi bem interessante. A cena do balde de lama, que jogam na cabeça da Maria do Carmo. Lembro-me também de algumas cenas muito boas com o Daniel Filho, que fazia o Renato, grande vilão na novela, que eram cenas de briga muito boas. O Daniel é um excelente parceiro também, um grande ator para se contracenar. Fazíamos cenas incríveis de briga, de disputa de poder. Que mais? Lembro-me do Antonio Fagundes fazendo um personagem hilário, gago, delicioso; Cláudia Raia... Gente! Cláudia Ohana. Que novela boa de fazer! E Tony Ramos, aquele ator! Tudo o que queremos é ficar contracenando com o Tony, porque ele é muito especial. Ah, eu me lembrei de uma cena: a cena da noite de núpcias. Porque a Maria do Carmo compra o marido, paga não sei quanto para que o Edu se case com ela e, na noite de núpcias, ele diz que não vai ter relação nenhuma com ela, vai dormir no outro quarto, e ela fica louca. Eu lembro também que nesse mesmo cenário, algum tempo depois, tem uma história de um tiro. Ela atira na Laurinha e acerta no Edu. É uma coisa assim, aquelas tragédias de novela. Cenas vibrantes. Como surgiu a idéia do seriado Retrato de mulher? Foi uma experiência muito interessante, porque era um episódio por mês e, em cada um, eu fazia um personagem diferente, com um autor diferente escrevendo. Então, eu pude fazer um exercício de atriz que foi muito rico para mim. E eu também me diverti muito, porque as histórias eram sobre os universos mais variados. Uma hora era uma freira trambiqueira, outra hora era uma fazendeira rancorosa, depois era uma burguesa terrível e muito sonsa. Eu lembro que, no último episódio, eu fiz uma mendiga, tipo uma sem-teto, alcoólatra, um personagem muito interessante. Era uma história muito interessante, da Noemi Marinho. E fui dirigida pelo Del Rangel. Foi um projeto muito batalhado, muito querido, muito rico. Foi um ano extremante excitante. Estávamos fazendo uma produção separada das produções da Globo, porque era um núcleo que foi criado para São Paulo. Nós éramos responsáveis pela escolha dos autores, das histórias, da produção. Foi um período muito criativo, quando eu pude desenvolver tudo aquilo que, desde o Walter Avancini, no início da minha carreira, eu vinha desenvolvendo: prestar atenção no conjunto geral da obra, de ver o projeto como um todo. Eu participei do desenvolvimento das histórias, da escolha do figurino, do cenário, das locações. Eu participava das reuniões de definição de elenco e, depois, no final, assistia às edições, à sonorização. É fascinante quando você começa a se envolver com todos os estágios de um produto de televisão. É tudo muito rápido, e tem que ser a primeira emoção a que conta. E tem que estar com a sua intuição muito aguçada e prestando muita atenção nela. Dá muito medo de errar, e é muito excitante também, quando dá certo. É muito delicioso quando constatamos que ficou como você imaginava. Nossa! Retratos de mulher foi um dos grandes momentos da minha carreira, porque eu pude fazer um exercício de criatividade que se estendia além das minhas funções de atriz. Foi muito gratificante. Você destacaria algum episódio que você tenha gostado mais de fazer? O primeiro foi muito importante, porque foi ele que realmente impressionou o Boni e a direção, mostrou que nós tínhamos condição de fazer o seriado. Depois, teve um muito engraçado. Era uma história do Doc Comparato, da tal freira trambiqueira. Era uma história deliciosa. E o último – para não ficar falando de todos, porque eu gostei de todos – era uma história em que foi feita a primeira experiência em 16 mm na televisão. Foi o episódio final, Era uma vez, Zil, em que eu fazia essa mendiga, sem-teto, essa figura extraordinária chamada Zil. Era uma história muito fora dos padrões normais da dramaturgia. Era uma história bastante diferente de tudo que eu tenho visto na televisão. Eu tenho muito orgulho de ter participado disso. Essa é uma história que eu gostaria de rever a qualquer momento: Era uma vez, Zil. Fale um pouco sobre a Helena, do Manoel Carlos. Você fez duas novelas seguidas com a personagem: História de amor e Por amor. Comente esses dois trabalhos. História de amor eu não queria que acabasse nunca. Eu cheguei a dizer para o Boni: “Não dá para ficar como aqueles seriados de antigamente, que duravam cinco, dez, quinze anos?” Eu queria ficar fazendo História de amor para sempre. Ele ria e dizia: “Não. Tem que acabar. Mas a gente faz outra depois”. E, realmente, um ano depois, ele me chamou para fazer o que, para mim, era História de amor 2, mas que teve o nome de Por amor. E ainda chamou a Gabriela para fazer a minha filha. Foi o máximo! E como foi o trabalho com a Gabriela na novela? Trabalhar com a Gabriela é uma delícia. Toda mãe sabe do que eu estou falando. E tem alguma cena marcante sua com a Gabriela, que você gostaria de destacar? Eu acho que a cena em que eu levo o meu filho para ela – depois de ter trocado os bebês, depois de ter trocado a pulserinha – como se fosse o dela, para ela amamentar. Aí foi realmente de estraçalhar o coração. Eu levo o meu próprio filho e dou para a minha filha. Foi muito forte, foi muito emocionante. Você volta a trabalhar com a Gabriela em Chiquinha Gonzaga. Vocês fazem a mesma personagem na minissérie. Como é que foi viver a Chiquinha Gonzaga? Chiquinha Gonzaga foi um dos trabalhos mais deliciosos que eu já fiz. Primeiro, porque o personagem é incrível, e a adaptação dessa história pelo Lauro César Muniz foi primorosa. A direção do Jayme Monjardim e do Marcelo Travesso, do Avancini Filho e de toda aquela equipe, aquele elenco, foi tudo impressionante. O trabalho também foi maravilhoso: viver a experiência de me ver com 84 anos, toda envelhecida fisicamente, tudo isso são coisas que não dá para mensurarmos, o quanto isso enriquece, o quanto faz com que nós andemos, o quanto adianta. Você olhar no espelho e falar: “Gente, envelhecer é isso? Tomara que eu continue com o meu interior preservado, a minha jovem interna preservada, quando o meu exterior chegar a ir por a essa idade, porque aí não tem problema”. Foi muito lindo poder receber da televisão, da TV Globo, aquele tratamento visual de envelhecimento. Aquilo é uma lição de vida mesmo, muito séria, muito importante. Você teve alguma dificuldade em interpretar a Chiquinha, pelo fato de ser uma personagem real? Sim e não. Porque é uma responsabilidade grande fazer uma pessoa que realmente existiu. Mas, ao mesmo tempo, eu estava muito segura, apoiada pelo texto do Lauro César Muniz, pelo livro da Edinha Diniz, pela direção do Jayme Monjardim. Quando se forma um time assim, com essa força criativa, nós vamos perdendo os medos e nos jogando. E é essa convicção que faz com que as coisas possam acontecer de uma maneira boa. Acho que foi o que aconteceu, porque a nossa alegria de estar fazendo aquele trabalho era tão grande que transbordava da telinha, e acho que contagiava a platéia. Tinha alguma dificuldade por ser uma produção de época? O que isso exige de diferente no trabalho de ator? O que eu lembro é que era verão no Rio de Janeiro e, em Jacarepaguá, onde nós gravávamos, fazia muito calor. Tinha espartilhos, tinha uma peruca cheia de cachos, chapéu – naquela época, as mulheres não saíam à rua sem chapéu – e muitos adereços, luva, bolsa. E ela andava sempre com partituras musicais. Eu lembro que a dificuldade era física mesmo. Você gravava uma cena e, a cada 30 segundos, parava e vinha alguém enxugar você, porque transpirávamos sem parar, principalmente nas cenas de externa. No estúdio, não tinha esse problema. Mas na externa, sim, e tinha muita externa. O tempo todo tinha alguém enxugando você, retocando, porque senão ficava aquela coisa toda desmanchada no vídeo. Disso eu me lembro, dessa grande dificuldade, nós todos lutando no verão do Rio de Janeiro contra o imenso calor e a condensação que acontece ali na região do Projac [Central Globo de Produção]. Mas voltar para casa depois de um dia desses, com a consciência de ter feito o melhor que se podia num texto extraordinário, era tão bom, era tão prazeroso. E depois assistir ao resultado já editado, no ar... Sabe, não cai nada do céu, tudo tem que ser construído. E quando amamos o que estamos fazendo, mais trabalho, menos trabalho, não faz nenhuma diferença. Você poderia comentar um pouco sobre Desejos de mulher e o seu personagem na novela? Andréa Vargas. Mais uma vez, eu volto a fazer um personagem com o nome de um outro que eu já tinha feito antes. Quando eu entrei na Globo, eu fiz uma Andrea e, dessa vez, eu recebi do Euclydes Marinho a Andrea Vargas. Eu estava vivendo uma Andréa pela segunda vez. O que eu me lembro bem dessa novela foi o período em que ela ficou desmemoriada. Eu achei aquilo uma delícia. Foi realmente a fase da novela em que eu mais me diverti. Ela perdeu a memória e não lembrava de nada, não reconhecia as pessoas, e começava a se vestir de uma forma hollywoodiana e glamourosa. Aquilo tudo tinha um encanto muito especial para mim. Foi o que mais gostei na novela. Você fez milhares de cenas ao longo da sua carreira. Você destacaria alguma em que você tenha traçado um paralelo entre seu personagem e você? Eu acho que estou sempre presente, porque cada vez que eu preciso realmente interpretar alguma coisa com emoção, com verdade, eu vou buscar na minha experiência de vida alguma coisa parecida, senão não tenho onde me apoiar. Ou parecida ou que me dê um apoio para eu poder ser sincera. A busca é sempre a da sinceridade. Se eu não for sincera, não está valendo, nem para mim nem para quem está assistindo. Mas eu destacaria a novela Por amor, como momento de intensa emoção. Em Por amor, eu tive duas cenas muito impressionantes. Uma é o momento onde a Helena decide que vai trocar os bebês. Ela não se conforma, acha que a filha não vai suportar ter perdido aquela criança. E ela acaba de saber também que a filha não pode mais ter filhos, porque teve que tirar o útero, então ela surta, fica completamente louca e decide que vai trocar as crianças. Ela esquece o marido, esquece tudo. Ela esquece o quanto é errado mentir e cria uma mentira para durar o resto da vida. Ela pira. Então, fazer isso foi muito forte para mim. E dar credibilidade a esse momento da vida do personagem, fazer com que o público acredite mesmo que ela pirou e que vai mesmo tentar uma coisa louca e definitiva, que mexe com o destino de uma porção de gente, daquela criança, da filha, do marido, do marido da filha, dos avós, de toda uma família, duas famílias, várias famílias. Ela envolve um médico nisso, é arrasador! É arrasadora a opção que ela faz. E foi muito, muito forte para mim. Desde o momento em que eu li a cena, eu já não dormi mais. Eu não conseguia fazer outra coisa a não ser pensar na cena, estudá-la e imaginar: “Como é eu vou fazer isso?”. Depois, foi muito emocionante ver a Gabriela, a minha filha que ainda não tinha sido mãe, amamentando essa criança. Então, eu falava: “Gente, como é possível?” Mexe, mexe com a cabeça, mexe com a estrutura mesmo da gente. Era mais emocionante pelo fato de ser a Gabriela a atriz que representava a sua filha? Por mais que você queira abstrair e diga: “É uma colega”, não é uma colega. Você sabe o tempo todo que quem está ali é a sua filha. Eduarda e Gabriela estão o tempo todo ali. Não dá para dizer assim: “Aqui eu não sou mãe”. Você entrar no estúdio e dizer: “Agora eu não sou mãe”. É mãe, sim. “Sou mãe, sim. Essa é minha filha”, você diz. Isso está presente o tempo inteiro, não dá para separar. Embora nós façamos da forma mais profissional e tentemos o tempo todo separar as coisas, não separamos. Se você tivesse que escolher o momento mais marcante da sua trajetória profissional, qual seria? É muita coisa bacana, são muitos momentos grandiosos. Eu posso escolher um Arquivo confidencial [quadro do programa Domingão do Faustão]. Ali, era eu, Regina, mas havia um coroamento de uma existência dedicada à arte de representar, digamos. Eu fiquei muito grata por ter sido alvo de um carinho tão grande por parte da produção e de todas as pessoas que deram depoimento. Tinha ali toda a minha família, meus filhos, colegas, pessoas muito importantes na minha história, todos me fazendo um afago, um carinho, e me dando muita força, muito amor. Eu acho que eu escolheria esse Arquivo confidencial, do Faustão, porque ele fazia uma retrospectiva na minha carreira e reunia as pessoas da família e da família profissional também, pessoas muito queridas, que estavam ali, falando comigo, dizendo coisas lindas. Então, se eu puder destacar alguma coisa no meio de tantas vivências maravilhosas, nesses 40 anos, eu destacaria esse programa, o Arquivo confidencial, do Faustão. Você falou de vários personagens que gostou de fazer. Quais você destacaria? Isso é impossível, não dá para escolher. Porque todos eles são importantes, todos são filhos, todos são criados, tirados do mais íntimo da minha vontade de fazer um trabalho bacana. Mas eu vou falar meio em função do que eu ouço. Tem a campeã de audiência, a hors-concours, que é a Viúva Porcina. As pessoas também falam muito da Raquel, da Maria do Carmo, das Helenas do Manoel Carlos e da Malu, claro. A Luana Camará, do Sétimo sentido, também é bastante lembrada. Eu vou parar, porque senão vou falar de todas elas novamente. Você falou da sua família profissional. Que pessoas você julga importantes na sua trajetória profissional, nesses 40 anos? Walter Avancini, Boni, Daniel Filho e Janete Clair. Também não dá falar muito mais, porque eu tenho pânico de esquecer, eu tenho muito medo de não me lembrar de pessoas. E todas as pessoas com quem eu trabalhei, em maior ou menor grau, me apoiaram, me ensinaram e me jogaram para frente. Sou uma pessoa de sorte. Tive as melhores oportunidades e muita gente maravilhosa depositou confiança em mim, e me deu oportunidades fantásticas: autores, diretores, produtores, colegas, câmeras, equipes. De repente, eu me lembro do Faia. O Faia é o sonoplasta que punha a música no estúdio para eu chorar. Ele sabia que se pusesse determinada música, eu não ia ter problema em chorar na hora da cena. E ele tinha esse carinho, ele desligava os microfones, soltava a música no estúdio. Eu falo do Faia, mas como símbolo de tantos colegas que estavam o tempo todo ali. O câmera que riu e abafou o riso numa cena que eu estava fazendo, isso me dá a auto-confiança para seguir em frente com mais ênfase ainda. Porque nós trabalhamos para os câmeras primeiro. Eles são a nossa primeira platéia. Quando acabava uma cena e o câmera tirava a cabeça de trás da câmera e estava com o olho cheio d’água, eu dizia: “Gente! Que coisa boa, que delícia ter essa cumplicidade, esse apoio, essa energia maravilhosa rolando aqui com a gente”. Um iluminador que sobe uma escada e ajeita uma luz para que a sua lágrima apareça, porque se não estiver bem iluminado, eu posso estar aqui aos prantos e essa lágrima não vai ser vista por ninguém: se ele não iluminar, ninguém vê. E assim é cada função do espetáculo da televisão. Cada função é importante. Quando eu sussurrar uma palavra no momento mais emocionante da cena, o boom-man tem que estar aqui junto comigo, todo torto, todo deitado. Quem já viu um boom-man trabalhar sabe do que eu estou falando. Eles são uns contorcionistas, fazem misérias para pegar o sussurro que o ator faz naquele momento. Então, eu teria que destacar toda essa gente anônima que está por trás, e que está ali virando noite, às vezes, escolhendo um figurino que você vai usar no dia seguinte; chegando às 6h da manhã, ligando cabo, ligando câmera, preparando a cena. Eu gostaria de agradecer a esses anônimos por tudo que eles me deram, a chance de poder, de repente, em algum momento, ter marcado um gol. E ninguém marca gol sozinho. Se não tiver todo um time me dando a bola, levantando a bola, preparando o lance, não adianta. Eu sei que essa é uma simbologia manjada, já usada, mas é verdadeira. Se não estiver todo mundo jogando direito, com fé, com confiança na vitória, não acontece nada. Então, é lindo saber que eu não estive sozinha e que tive parceiros excepcionais, incríveis. Desde aquele que, no primeiro momento, falou: “Eu acho que a Regina pode fazer esse papel”. Isso é como uma fada mágica que me toca com a sua varinha e me encanta, para poder viver uma outra vida. E isso tem desdobramentos incríveis. Aí, todo o circo é armado, e nós vamos lá e batalhamos, como operários mesmo, como dizia o Walter Avancini. Nós somos operários, o nosso produto é a emoção. Estamos aqui todos de mangas arregaçadas para gerar emoção, seja ela em forma de riso ou de lágrima. Estamos aqui trabalhando todos com um único objetivo, emocionar as pessoas.